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Porché Brinker em “A Última Loja de Consertos”
Porché Brinker em “A Última Loja de Consertos”| Foto: Disney+ / Divulgação

“Ao longo da minha vida, parece que Deus me guiou com um sentimento interno de que meus desafios não foram feitos para me destruir. Em vez disso, eles foram feitos para me fornecer a empatia que eu precisava para ser capaz de me relacionar e ajudar outras pessoas em posições semelhantes, para me dar um impulso inegável que me impulsionou para áreas da vida com as quais eu nunca poderia ter sonhado e gerar o nível profundo de emoção que foi derramado em cada uma das minhas criações musicais.” (Quincy Jones, 12 Notes on life and creativity).

Espero que o caríssimo leitor não tenha se cansado de me ler falando de música nesta coluna. Não sendo um músico ou mesmo um artista, todas as minhas observações sobre arte se dão através de impressões pessoais, como um diletante curioso e dedicado, e de informações que me chegam através de pesquisas e leituras sobre o tema.

Tenho uma conexão profunda com as expressões artísticas e sempre que algo me toca de modo especial, tenho o impulso de escrever algo, a fim não só de aprofundar e, de certo modo, racionalizar minha experiência, como também de recomendar aos leitores algo que julgo necessário ser compartilhado por sua natureza superior. Hoje não será diferente.

Soubera do documentário “A última loja de consertos” (Disney+) no início deste ano, por ocasião da cerimônia do Oscar, que o consagrou com o prêmio de Melhor Curta-Metragem Documental. Mas ainda não tinha tido a oportunidade de assisti-lo. Pois no último final de semana fui presenteado com essa pequena obra-prima – que, na verdade, não é um curta, mas um média-metragem, de 40 minutos –, dirigida pelo cineasta canadense Ben Proudfoot, e pelo compositor Kris Bowers, conhecido pelas trilhas sonoras de “Green Book”, “King Richard”, e do recente remake do clássico “A Cor Púrpura”.

O filme é não só uma ode ao poder redentor da música, como, também, um exemplo de que a vocação é, também, um chamado ao serviço do próximo

O prólogo nos introduz à história: “Los Angeles é a capital mundial dos estúdios de gravação. O Distrito Educacional Unificado de LA (LAUSD) dá aos alunos instrumentos musicais recuperados e é um dos últimos a fazer isso nos EUA. No coração da cidade, alguns poucos moradores dedicados cuidam de oitenta mil instrumentos dos alunos, um serviço contínuo desde 1959”. Desse modo, somos apresentados à oficina que faz o conserto desses instrumentos, bem como a especialistas de cada um dos quatro departamentos – sopro (ou madeiras), metais, cordas e piano – e suas comoventes histórias.

Cada um dos técnicos no reparo de instrumentos musicais, aos quais somos apresentados, nos dão uma lição de como a música se entrelaçou em suas vidas e os levou àquele que, para eles, é um local sagrado, de onde, inclusive, pode sair, como diz um deles, “um futuro vencedor do Grammy”. Alguns alunos, intercalando com os especialistas, também dão seu testemunho.

Dana Atkinson trabalha no departamento de cordas e nos conta como a música lhe ensinou a lidar com os traumas relacionados à sexualidade: “Minha mãe e meu pai eram músicos, e minha mãe me ensinou que a música é como a natação. O ritmo tem importância constante, se você parar, não há música. Seja como for, não pare. Continue. Mesmo que seja um desastre terrível, simplesmente continue; não desista, não volte atrás, persista”. Isso aumentou até o seu nível de compreensão da infância e de como seu trabalho é fundamental para que os alunos também persistam em seu instrumento.

Paty Moreno, dos metais, tem sobre si as agruras de ser uma imigrante mexicana que decidiu perseguir o “sonho americano”. Conseguiu emprego numa loja de instrumentos musicais que também era uma oficina de reparos. Mãe solteira, com dois filhos, ganhando pouco, por vezes teve dificuldades até para comer: “Éramos muito pobres” –  ela diz, chorando. “Às vezes não tínhamos comida. Às vezes não tínhamos nada para o natal. Eu vim para este país pensando: ʻSim, este é o sonho americanoʼ. E quando não tinha comida para os meus filhos, eu pensava: ʻIsto não é o sonho americanoʼ”. Até que surgiu a oportunidade de fazer um teste no LAUSD. Mesmo descrente que conseguiria passar, fez o teste e, para sua surpresa, foi admitida. Trabalha lá há vinte anos e coleciona objetos que encontra dentro das campanas dos instrumentos que conserta, e fica tentando imaginar a história das crianças por detrás daqueles objetos.

Duane Michaels, que trabalha com as madeiras, é um violinista cuja história, absolutamente inusitada, o levou, com seu grupo de bluegrass, a tocar para Frank Sinatra, Liberace e abrir um grande show para ninguém menos que Elvis Presley. Tudo isso por causa do filme clássico “A noiva de Frankenstein”, de 1935, e de um violino comprado por vinte dólares numa feira de usados. Duane diz algo que é uma verdade incontestável:

“O maravilhoso departamento de sopro são chaves, parafusos, varas e molas. Se eles entortarem ou enferrujarem, o instrumento vaza. É como um quebra-cabeça. Se achar um vazamento, conserte. Próximo item. Se vazar, conserte. Talvez você tenha de desmontar o instrumento todo para ficar perfeito. Desmonte. Faça o que precisar porque, para uma criança que tenha interesse em tocar, aquele instrumento pode mudar a sua vida por completo.” - grifo meu.

Ele se emociona e nos emociona ao dizer isso. O aluno que deu seu depoimento anteriormente, disse: “Se você me dissesse, há cinco anos, que eu estaria tocando sousafone, eu diria: ʻNossa! Acho que você está mentindo, cara, porque não é possível. Não sei tocar nadaʼ. Porque eu nunca teria, naquela idade, um instrumento tão caro. Na minha casa, minha vizinhança, nunca poderíamos comprá-lo, eu acho. Eu pedia muito aos meus pais, pedia que me comprassem um, e eles repetiam a mesma coisa […]: ʻou a tuba ou vocêʼ […]. Por sorte, eu pude ter um sousafone da escola em casa […]. É emocionante, porque quando você pensa nisso… Agora, com dezoito anos, recém-formado, indo pra faculdade, começando a vida, vou achar um jeito de fazer da música minha carreira, minha paixão, meu ganha-pão”. É maravilhoso isso ou não é?

Por fim, o supervisor da oficina e afinador de pianos, Steve Bagmanyan, um armênio que emigrou para os EUA por causa da Guerra do Alto Carabaque, ocorrida entre 1988 e 1994. Uma história de violência, separação, adaptação e morte, superada (ou quase) pelo amor à música. Ele se lembra da excitação que sentia, quando pequeno, ainda na cidade de Baku, no Azerbaijão, quando o afinador de pianos aparecia na escola e de como era impressionante a quantidade de cordas do instrumento. Ao fugir de seu país, perdeu o interesse pela música por conta dos traumas, até ser surpreendido pelo destino. Ele diz:

“Chegamos aos EUA, e eles providenciaram a ajuda do Ken e da Verônica. Talvez eu soubesse dizer ʻoláʼ [em inglês]. Eu tinha um pequeno dicionário russo-inglês, então, se quisesse dizer algo, procurava as palavras e mostrava ao Ken. Quando perguntei em que ele trabalhava, ele tentou me dizer usando o dicionário e não encontrou as palavras adequadas; mas ele tinha um quadro, uma pintura linda na parede, acima do piano. O artista era Norman Rockwell. Ele apontou para o quadro, e me lembrei do afinador de piano na escola, na sala de aula. Então pensei: ʻMeu Deus! Será que ele afina pianos?ʼ Então eu fiz assim [faz o sinal de afinação]... e ele disse que sim. Começamos a rir, e ele disse: ʻGostaria de me ajudar na loja de pianos?ʼ.”

Ele complementa: “Depois do que tinha acontecido no passado, perdi a vontade de continuar com a música, estar na música, ficar com a música, mas a vida me trouxe de volta. Acabei virando afinador de piano. Viu como a vida é?”. Ou seja, como diz sabiamente Julián Marías, “Vocação é aquilo que não se pode deixar de ser”.

Ao final, eles fazem coro sobre a importância desse trabalho e Bagmanyan complementa: “É por isso que não somos só uma oficina de instrumentos musicais. Quando um instrumento quebra, tem um estudante sem instrumento. Mas não; não na nossa cidade”. E o filme termina com uma belíssima apresentação com alunos e ex-alunos do LAUSD (com participação dos próprios técnicos), que receberam instrumentos gratuitamente e, atualmente, tocam na orquestra do Distrito.

Esse documentário é mais uma prova do poder da vocação e da redenção maravilhosa que a música divinamente nos proporciona. Não deixem de ver!

Conteúdo editado por:Aline Menezes
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